Secretariado X Assessoria: uma breve reflexão sobre a nomenclatura da profissão

Desenho de Frédéric Forest

Escrever sobre a gente é sempre um grande desafio. Primeiro, exige um cuidado para não fantasiar demais aquilo que se vive, e segundo nos exige uma postura verdadeira com nós mesmos, enfrentar nossas questões e visitar temas que evitamos tocar. Não é uma tarefa fácil. E visitar nossa formação e atuação profissional é encarar isso tudo também.

Nestes últimos tempos, em que tenho me dedicado a refletir sobre o secretariado, tenho me permitido questionar muitas coisas e assim tentar entender melhor esse fenômeno chamado “exercício secretarial”. Já temos algumas ideias postuladas: somos uma área de excelência; temos uma formação interdisciplinar e multifuncional; somos únicas/os em nossa atuação; temos a nossa disposição uma série de conhecimentos de outras áreas, científicas ou não, que conseguimos utilizá-los de forma assertiva em nosso exercício diário; e além disso tudo, somos adaptáveis, humanos e estratégicos. Isso tudo forma a/o profissional de secretariado.

Mas ao mesmo tempo em que sabemos disso tudo e conseguimos exercer diversas funções, encontramos várias/os profissionais desempregadas/os, vemos muitas vagas de emprego para secretária (nunca vi vaga para secretário, todavia vejo várias para secretário/a executivo), onde não exige formação específica, temos ainda vários discursos preconceituosos acerca da profissão, ainda é possível ver falas sexistas e machistas direcionadas ao secretariado. Não obstante, quando conseguimos ser inseridos no mercado, dificilmente conseguiremos ter um plano de carreira ou promoção que nos permita chegar na gerência ou diretoria da empresa, ocupando esses cargos e não sendo a/o secretária/o desses/as executivos/as.

Nossa profissão está permeada de paradigmas e preconceitos, muitos deles estão diretamente ligados à questões históricas. Quero relembrar, por exemplo, que quando os homens foram para a guerra (primeira e segunda guerras mundiais), as mulheres tiveram que assumir postos de trabalho para sustentarem a casa. Nesse período, as mulheres entram no secretariado. Elas exerciam as mesmas funções, ganhando bem menos do que os homens, levando em consideração uma série de aspectos, dos quais posso citar a questão da formação profissional. No início do século XX, ainda era muito restrito o acesso à educação profissional para mulheres, era quase que inexistente. Vivíamos uma era em que a mulher era encarada como uma matriz genitora, onde seu papel fundamental era ser mãe e esposa, de modo exclusivo. As que iam contra isso, eram vistas como subversivas e/ou, até mesmo, bruxas. Logo, a formação feminina era para isso: ser mãe e esposa, ponto. Há então uma quebra de paradigmas com a guerra, todavia as mulheres que foram atuar nas empresas, em sua grande parte, não tinham formação além da básica, quando muito. Logo, empresários espertos se sentiram no direito de pagar menos. Oras, faltava “formação”, tinham muitas querendo trabalhar, poucas vagas, logo baixos salários seriam aceitos sem problema algum. Além disso, no campo secretarial é percebido um movimento de atrelar os interesses empresariais com as habilidades domésticas das profissionais que estavam entrando no mercado, como o cuidado com a limpeza da sala, o cuidado com coisas pessoais do chefe, o fazer e servir o café, dentre outros. Isso fez com a profissão fosse ganhando novas roupagens.

Tentemos construir uma lógica da atuação secretarial no decorrer dos anos: temos os escribas como os primeiros secretários, eram profissionais altamente qualificados que andavam com reis e autoridades; depois com a criação das organizações, tivemos a atuação profissional de assessores executivos, profissionais com formação ampla e abrangente; com as guerras mundiais, entram as mulheres na profissão, sem formação, mas com necessidades diretas e imediatas que direcionam para uma atuação adaptável; e, nos dias atuais, temos as/os profissionais de secretariado que são altamente qualificadas/os.

Preciso dizer que o problema das mulheres entrarem na profissão, com pouca formação profissional, é extremamente social. Há uma construção entre o ser mulher e ser homem. É fato que os homens sempre tiveram acesso à educação, logo tinham mais preparo para algumas questões. As mulheres entram com força no mercado de trabalho e na conquista de direitos lá para meados da segunda metade do século XX.

Vejam bem, tivemos uma “ruptura” na formação profissional do secretariado. Havia uma linearidade na atuação de profissionais qualificados, em um momento entram várias profissionais que não tinham formação para tal, que se formaram enquanto faziam a coisa acontecer. E hoje, voltamos para a excelência na formação e atuação.

Qual o motivo, então, de ainda vivermos tantos preconceitos e não conseguirmos um senso comum mais amplo de que a/o profissional de secretariado é sim extremamente excelente e que não serve mais café?

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O termo secretária/o tem origem do latim, tendo seu significado ligado ao secreto, guardar o segredo e dizer conselho privado. Esse significado epistemológico do termo condiz com a realidade, a/o profissional de secretariado guarda segredos e trabalha com questões sigilosas, todavia não é só isso. Não paramos nisso, a atuação profissional é muito mais ampla do que se pode imaginar.

No Dicionário Online de Português, quando procuramos o significado da palavra assessoria, vemos os seguintes resultados:
Assessoramento; grupo de indivíduos especializados, instituição, empresa ou departamento que assessora, presta auxílio a pessoas físicas ou jurídicas.
Órgão ou grupo de pessoas responsáveis por assessorar, por oferecer um serviço especializado, a um chefe.
Empresa, instituição ou entidade especializada que pesquisa e fornece dados, informações, sobre um assunto determinado.

Secretariar não é assessorar. Esses dois termos não são sinônimos, como muitos colocam. Os salários não são os mesmos, as funções também não são, além disso os paradigmas envolvendo essas atuações são estrondosamente, diferentes. O termo assessoria foi ligado ao secretariado quando se percebeu que a atuação do assessor exige competências e habilidades que estão presentes na formação do profissional de secretariado executivo. Não sei quem fez essa ligação primeiro, não há vestígios históricos disso, aliás, temos poucos registros históricos de nossa atuação antes do início da segunda metade do século XX.

Faça um teste rápido com dois conhecidos que não conheçam de modo mais amplo o secretariado, pergunte quem é o profissional de secretariado e quem é o profissional das assessorias. Dificilmente, articularão os dois.  Fiz esse teste com algumas pessoas, com perfis distintos, e percebi que quando falavam do secretariado empregavam funções mais operacionais e técnicas para ele (“o que atende o telefone, recebe as pessoas, organiza a sala…”), já quando falavam do assessor diziam que esse dominava funções mais gerenciais (“orienta pessoas, resolve problemas, conflitos…”). Qual é o senso comum da grande maioria sobre o secretariado? Essa resposta não tenho, mas o que posso dizer é que minha amostragem não comentou sobre grandes possibilidades de atuação para esse profissional. Não há uma construção social significante para esse termo que usamos, secretariado, que direcione para uma visão estritamente positiva, é como se tivéssemos que provar sempre que somos bons, quando temos uma formação que nos torna excelentes.

Os termos “secretariado” e “secretária” estão impregnados de sentido, que lamento dizer que nem sempre são positivos e coesos com o que somos. Desde a regulamentação da profissão, em 1985, e a criação do código de ética, é feito um trabalho nacional de orientação acerca da profissão, todavia alguns paradigmas insistem em existir. Poderia dizer que somos uma profissão nova e por isso ainda temos algumas barreiras a vencer, mas ouso dizer que existem profissões que foram regulamentadas depois da gente e que não dispõem de tantos paradigmas negativos como a nossa, por exemplo a Assistência Social, profissão regulamentada em 1993. São áreas distintas, todavia contam com um significado social construído sobre o seu ser significante que direcionam para um entendimento em nível de senso comum da profissão.

Os Estóicos, por exemplo, comentam que a palavra é composta por som, objeto e uma “entidade que é significada”, que é verdadeira ou não, com base nos interesses sociais. Essa entidade significada é toda a construção social por trás do termo que é adotado (a diferença entre borboleta e barata, mesmo sendo ambas insetos, uma achamos linda e outra indesejável, é construída com base em um senso comum do belo). Santo Agostinho, em seu texto Sobre a Dialéctica, afirma que a palavra é o signo de algo, de modo que o receptor consiga entender a mensagem. Esse signo não é vazio, ele é impregnado de sentido, ao passarmos ele para uma outra pessoa, passamos também um pouco do nossos preconceitos acerca daquilo. Tzvetan Todorov, um dos maiores filósofos e linguistas do mundo, em seu livro Teorias do Símbolo, é enfático ao afirmar que as palavras são dotadas de sentidos e significados que lhe são atribuídos com o decorrer da história humana. As palavras conseguem tanto alimentar significados positivos acerca de algo ou negativos, vai depender da intencionalidade do locutor e da forma como é abordada.

Secretariado e secretária são termos construídos historicamente, que estão impregnados de sentidos, em grande parte minimalistas, excludentes, preconceituosos, enviesados, pejorativos e simplórios. Para verificar melhor essa minha afirmação, nessa semana fiz uma pesquisa de vagas para “secretária/o executiva/o” e para “assessor/a executivo/a”, disponibilizadas no período de fevereiro, março e início de abril de 2018, nos sites EmpregoDF, Sine DF, Catho, LinkedIn, Indeed e BNE. Foi uma trabalheira observar essas vagas e os perfis que são exigidos para elas, mas foi bem interessante para perceber algumas coisas: os perfis são distintos, para o assessor é esperado atitudes e habilidades mais gerenciais, relacionais e emocionais, e sempre o domínio de rotinas administrativas. Já para o profissional de secretariado, é esperado (quase 90% das vagas) uma formação técnica, boa parte das vagas não exigem formação específica (em torno de 40%), outras pedem somente o ensino médio (35%), salários baixos, ao contrário do assessor executivo, e algumas vagas com exigências do tipo “fazer a limpeza do escritório” e “cuidar da agenda pessoal do executivo”. Nessa minha pesquisa, procurei por vagas para secretário, técnico em secretariado e secretário executivo.

Veja abaixo as atribuições de uma vaga para assessor executivo, disponibilizada pelo site BNE: apoiar o presidente, priorizar demandas e pendências; gerir a agenda, acompanhar e assessorar o presidente em reuniões,realizando a ata e acompanhando das pendências; acompanhar e assessorar em eventos diversos nos quais ele representa a entidade; preparar a logística de viagens envolvendo a presidência, solicitando veículos, adiantamento de despesas, passagens aéreas, hospedagem e o que mais for necessário; receber notas fiscais e elaborar relatório de despesas do presidente; garantir o arquivo físico e digital de documentos da presidência; prospecção de parceiros para plataforma; prospecção de patrocinadores; desenvolvimento de apresentações e projetos; planejamento e desenvolvimento do relatório de gestão; desenvolvimento de material de divulgação. Você também se viu contemplada/o nessa atuação? Sua formação também contemplou esses conteúdos? Bem, somos formados para sermos assessores executivos, mas sofremos dia e noite por alguns paradigmas por trás dos termos secretária e secretário. É como se a atuação de um secretário fosse mais privada que a de um assessor. Isso é um absurdo imenso, chega a ser desumano: ter uma pessoa preparada para algo, sendo subutilizado e/ou subjugado por causa de uma nomenclatura. Precisamos fazer algo acerca disso.

Esse é o momento do texto em que você espera, ou não, uma sugestão minha do que fazer. Infelizmente, temos mais dúvidas do que respostas.

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O texto de hoje é mais um convite a reflexão do que deliberativo. Não ponho uma teoria pronta, mas questiono o motivo de sofrermos ainda alguns preconceitos. Temos pernas e força para desconstruir todo o arcabouço significativo por trás dos termos secretária e secretário? Não seria mais assertivo mudarmos a nomenclatura da profissão para assessor e assessora, tendo em vista que tais termos conseguem nos representar de modo mais coeso e consciente, além de não estarem viciados com alguns paradigmas negativos? Se a atuação do assessor e da assessora, ambos executivos, exige formação de nível superior (verificado nas vagas encontradas) e habilidades relacionais, atitudinais e emocionais, articuladas com as rotinas administrativas (essa articulação é o que chamo de técnicas secretariais, algo próprio de nossa atuação profissional), não seríamos nós assessores executivos? Se somos assessores executivos, não seria interessante adequar às normativas e formações para esse termo, ao invés de gastar esforços na desconstrução, não alcançada de modo geral, de paradigmas que insistem em permanecer, mesmo em meio a era da informação? Várias perguntas que me inquietam e tiram o sono. Precisamos refletir sobre isso, urgentemente.

Temos uma construção social por trás dessas nomenclaturas, além disso o mercado faz bem essa distinção, como pude perceber. Além disso, ainda temos sérios e graves problemas com exigências loucas em algumas vagas, o preconceito em nível de senso comum que para ser secretária/o não é necessária formação, que a secretária é amante do chefe e sim, serve café. São questões reais, não podemos dizer que isso mudou totalmente. A maior parcela da sociedade ainda alimenta esse discurso. Precisamos mudar isso, seja continuar lutando para a quebra de paradigmas ou buscando nomenclaturas que nos contemplam e que não estão enviesadas socialmente.

O que pensa sobre isso?

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Para fins de registro, caso pensemos na mudança de nomenclatura como uma possibilidade, apresento algumas sugestões de nomes para a formação e ocupação: Curso Superior de Tecnologia em Assessoria Executiva, Curso de Bacharelado em Assessoria Executiva (Bilíngue ou Trilíngue), Curso Técnico em Assessoria, técnica/o em assessoria, bacharel/a em assessoria executiva (bilíngue ou trilíngue), tecnóloga/o em assessoria executiva, assessor/a executivo/a.


Referência
Livro Teorias do Símbolo, de Tzvetan Todorov. Disponível no Google em PDF.


P.S.: Sexta-feira que vem teremos mais um texto reflexivo sobre o secretariado. Aguardo a sua visita, leitura e contribuições para o debate.

Comentários

  1. Jefferson,
    Que texto gostoso!
    O que mais me fez refletir, foi sobre o Plano de Carreira para a nossa profissão.
    Quando somos excelentes na atuação como secretária, sequer nos cogitam para cargos mais elevados quando surge uma vaga na empresa.
    Dizem: você já assessora um Diretor, esse é o topo para você. (lágrimas)
    Enfim, amo o que faço e nada irá me dissuadir de continuar no caminho da maestria.
    Muito obrigada por nos enriquecer mais uma vez!
    Até a próxima sexta!

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    1. Keysa, minha leitora querida.
      Infelizmente, essa é uma realidade em nossa profissão. Ainda sofremos pela falta de um plano de carreira que nos permita ir além. Tem empresas que são mais maleáveis a isso, todavia são casos isolados.
      Precisamos movimentar esse debate.
      Abraços fraternos e obrigado pelo feedback.

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  2. Adorei o texto e a sua sugestão de alteração da nomenclatura super me agrada. Acredito que temos que buscar novas soluções para nos readequar ao mercado. Se lutar pelo reconhecimento usando o termo secretário não está dando certo, por que não mudar a estratégia?! Sabemos que o nosso curso é riquíssimo, que temos habilidades incríveis, mas por puro preconceito com o nome secretário perdemos espaço dentro e fora da empresa. Sem contar que perdemos fortes candidatos ao nosso curso que desistem de ingressar porquê familiares e colegas reprovam a ideia com discursos preconceituosos. Amo ser secretária e tudo o que eu quero é poder ver a minha profissão crescendo e mostrando o seu valor. Conte comigo!

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    1. Kellen, minha amiga do secretariado,

      sofremos demais com alguns preconceitos atrelados ao termo "secretária/o". Assim como você, tudo que quero é ver nossa profissão, que tanto amamos, crescer e crescer muito, reafirmando seu potencial, seu valor e sua excelência.

      Conte comigo também!

      Abraços e obrigado pela visita.

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    2. Texto limpo, claro e direto, gostei. Sobre a nomenclatura, acho pertinente a mudança, condiz mais com a nossa realidade.
      Ate a próxima!!!!

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